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Eutanasia
Júlio Cézar
Meirelles Gomes
Primeiro secretário
do Conselho Federal de Medicina - Gestão 94/99; membro
do Conselho Editorial da Revista Bioética
O autor, à guisa de
ilustração do simpósio sobre
eutanásia e a fim de amenizar as reflexões sobre um
tema considerado árido, oferece comentários
sobre uma preciosa publicação dos anos 30, a saber: um
ensaio médico-social assinado por
Januario Cicco, autor, provavelmente médico, que discute
pela
primeira vez no país um tema considerado maldito
e até insolente para a época. O mesmo desfila com
muita habilidade argumentos favoráveis
e contrários, apresentados na engenhosa forma de um
romance que se desenrola através da técnica
do diálogo, a exemplo da obra reflexiva de Platão.
O livro põe em evidência histórias sobre a saga
dos moribundos, cenas ocorridas há mais de meio
século no tenebroso cenário das Santas
Casas de Misericórdia, naquele tempo verdadeiros
depósitos de infelizes. Januario Cicco se
inclina, ao fim da obra, pela aceitação da eutanásia
como
forma piedosa de abreviar sofrimentos insuportáveis
em pacientes terminais, quando o médico baseado
em rígidos critérios deve atuar como a extensão
terrestre da misericórdia divina, esta a sua tese final.
UNITERMOS -
Eutanásia, paciente terminais, morte piedosa
O livro Euthanásia chegou
às nossas mãos em setembro de 1997, em Natal - RN,
quando participamos, como representante do Conselho
Federal de Medicina, de um debate ao vivo gravado nos
estúdios da TV Universitária da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte - UFRN sobre o tema. Nesta ocasião,
tivemos a oportunidade de conhecer o professor de
teologia e filosofia, Pe. Eymard L'erastre Monteiro, o
qual, após comentar o livro como marco e referência
histórica em nossa literatura, teve a gentileza de nos
oferecer um exemplar, entre os raros ora disponíveis, e,
segundo ele, impresso em caráter excepcional pela
"Nossa Editora/Fundação José Augusto" a
partir de um exemplar original em precário estado de
conservação.
Enfim, trata-se de uma publicação
da Editora Irmãos Pongetti, Rio de Janeiro, datada de
1937 - com certeza, a primeira obra ou monografia, no
país, de cunho filosófico voltado para o tema
eutanásia. Temática audaciosa, senão até esdrúxula
para uma época da literatura brasileira absorta em temas
românticos, com incursões na seara do realismo, no
romance regionalista, enquanto a poesia, como refém do
modelo simbolista, ousava os primeiros passos modernistas
marcados pela revolta conjunta de forma e conteúdo.
Neste cenário, surge em 1937 esta
surpreendente obra assinada por Januario Cicco, o qual
supomos médico de formação, em face da estreita
familiaridade com temas científicos da medicina e
situações observadas em enfermaria de Santa Casa com
doentes agonizantes e terminais. Além disso, chama a
atenção o seu fascínio pelo tema, instigante para a
época, dominada pela sujeição filosófica à doutrina
cristã, pela resignação diante dos valores dominantes
e mais, pelo conformismo científico.
Nada se pode colher nesta obra
sobre a personalidade do autor, sua observação a
respeito de outras obras, sua inserção na sociedade da
época ou, pelo menos, seu perfil profissional, salvo a
presunção acima comentada. A obra, que tem no
frontispício o título de novela científica,
apresenta-se na forma típica de um romance que hoje
seria rotulado no subgênero do realismo fantástico, na
verdade um corajoso ensaio sobre o tema biofilosófico da
eutanásia. O eixo da reflexão está no âmbito da
filosofia aplicada às ciências biológicas, embora o
tema da morte seja universal e secular no âmbito da
filosofia clássica e mais antiga.
Na página que precede o texto
lê-se o subtítulo de ensaio de "crítica
médico-social", buscando redefinir o gênero da
obra de forma mais objetiva, além de denunciar a
afinidade entre autor e profissão médica. E, curioso,
não dispõe o livro de prefácio, nota de
apresentação, dados bibliográficos ou outros elementos
que indiquem a procedência ou origem do autor, quiçá
existentes na edição original, no entanto mal
preservada.
Na última capa lê-se apenas que o
livro foi editado a partir de originais impressos pela
Editora Irmãos Pongetti em 1937, pela "Nossa
Editora/ Fundação José Augusto", de origem e
local também não esclarecidos. O estado de
conservação dos originais apresentava-se com certeza
muito precário, o que pode explicar a ausência de
referências e até a existência de alguns trechos em
branco, como ocorre na última página do livro.
Mas não importa, a obra se explica
pelo mérito do discurso sobre um assunto temerário e
quase maldito no círculo literário da época, primeira
metade do século e, vai além, quando deixa entrever as
fortes inclinações do autor pela aceitação da
eutanásia como procedimento médico, inobstante a sua
compreensão sobre a intangível sacralidade da vida,
como doação divina. A aceitação da tese está sujeita
a regras severas diante dos critérios de doença
incurável na época, mas sem qualquer traço de
desobediência aos desígnios da Providência Divina.
Há momentos primorosos no texto,
onde a reflexão assume a forma de uma discussão
humanitária sobre casos terminais e o sofrimento humano
é levado ao extremo, incitando o médico a agir movido
por misericórdia, solidariedade e até compaixão, no
sentido de aprimorar ou concluir a obra de Deus. Tal
fato, o desenlace pela mão do médico, ocorre com a
mesma naturalidade e reverência com que os parteiros
cortavam desde tempos imemoriais o umbigo do recém-nato
e separavam o concepto da mãe, com o intuito de ajudar a
natureza. O recém-nato, no caso, em direção à vida
provisória; o moribundo, por sua vez, em direção à
vida eterna e ao suposto Reino da Glória. Vejamos o
texto (preservado na forma do português antigo, mais
adequado ao clima das reflexões sobre a morte):
Cursava eu o 3º anno
medico, na velha Faculdade da Bahia, quando, certa
vez, entrando na enfermaria de S. Vicente, logo a
minha attenção se voltou para um homem de meia
edade, pelos seus gemidos surdos e constantes
compugindo a quantos visitavam aquella clinica,
então do velho professor Dr. Pacheco Mendes.
Indaguei a causa dos seus padecimentos, e o pobre
homem mostrou-me uma coxa aberta por sarcoma,
desagregando-lhe a vida aos poucos, torturando-o
entre as tenazes de uma agonia dolorosa, obrigando-o
a se mover a cada minuto, torcendo o tronco e se
contorcendo aos espasmos das punhaladas.
Moço, disse-me elle, acabe com a minha vida. Faz
seis mezes que padeço da molestia e dos curativos.
Quando aquelle rapaz (e apontou para o interno do
dia) vem bulir com a minha perna, eu já começo a
soffrer de longe. Si eu tivesse uma faca acabaria com
o resto dos meus dias.
Passei-lhe a mão pela cabeça, já grisalha, e cujos
cabellos brancos como que numeravam os seus dias de
soffrimento, e não sei o que lhe disse; mas senti
vontade de chorar, e nesse instante indaguei de mim
mesmo porque se não acabava com aquelle martyrio,
já que a sciencia cruzava os braços deante da
incurabilidade de semelhantes casos?
Ao longo da narrativa, o autor -
muito habilmente e para amenizar a discussão (aí temos
o romance como veículo ou envoltório da matéria
essencial) - usa o expediente de um romance ocorrido em
zona rural, impregnado de lendas e superstições, onde
mal se distingue o limite entre o fato e o sobrenatural,
tão imbricados. A partir daí, constrói uma fascinante
história de envolvimento de um médico jovem com a
sedutora filha de um fazendeiro, num ambiente de mitos,
crendices e padecimentos humanos. Em seguida, descreve de
maneira dramática a degradação orgânica do ser humano
minado em sua dignidade, numa situação atroz e
deplorável capaz de inspirar no semelhante a piedade da
eutanásia como um gesto final de solidariedade, de
beneficência para um sofrimento insuportável. Só que
no presente caso o sofrimento não é mais a dor, mas a
própria vida degradada em forma e contéudo:
No último aposento da casa,
voltado para a varanda, numa área espaçosa e bem
cuidada, protegido por uma cortina de gaze, um leito
único guardava os despojos de um morto-vivo, sem
orelhas, deformado o nariz, de mãos mutiladas por
amputados alguns dedos, numa desaggregação de
membros e numa visão macabra de pedaços de carne
sangrenta.
Desapparecera-lhe o olfacto; não lhe doíam os
orgãos; cegára de vez; só o coração vivia ainda,
nutrindo todo aquelle montão de miserias.
Sendo-lhe apresentado pelo Dr. Mario, o recemvindo,
que o ia ver, o desgraçado enfermo, voltando-se para
os lados do visitante, que lhe fallava docemente,
não esperou fins de phrases consoladoras, e explodiu
quasi chorando:
- Deus seja louvado, moço ou velho senhor que me vem
ver. Sou uma sombra humana que faz mal; pudesse sahir
deste leito, já teria terminado os meus dias, porque
elles pesam demais na mocidade destas creaturas que
envelhecem com a minha dor, e eu sinto que as matarei
do meu mal, si não morro antes de contaminal-as.
Pelo amor de Deus, doutor, mate-me (o grifo é
nosso). Há muito que não quero viver. O Dr. Mario
é o meu algoz, porque não acaba com estas torturas.
As suas visitas teem missão evangelica, porque
tratando de molestias incuraveis, visa o medico
apenas a prodigalidade do conforto espiritual, e esse
eu terei na eternidade, onde Deus me espera para
coroar o meu soffrimento com a graça da sua luz
divina. Continúo um obstaculo á felicidade de
minhas irmãs, sacrifico neste recanto do mundo
dezenas de creaturas sem culpa, e porque querem que
eu continúe padecendo, mutilado e ameaçando da
mesma tortura quantos me cercam neste inferno? Não,
eu quero morrer.
Quand on a tout perdu, quand n'a plus d'espoir, La
vie est un approbe et la mort un devoir.
Mais adiante, o autor exibe uma
vigorosa argumentação em favor da eutanásia, já em
termos dramáticos e exaltados, disposto a levar de
vencida qualquer oposição à sua tese:
Por ventura o medico não
tem o direito de matar, e os povos mais adeantados em
civilização não incluiram nas suas leis a pena de
morte, ao talante dos governos, da exaltação
popular e do criterio menos sensato de juizes
facciosos?
- Tudo depende de legislação, e ainda assim ninguem
evitará uma injustiça, tanto mais quanto essa
figura austera, vendada e armada, vê sempre para que
lado pende o fiel da balança; mas o homem tem sempre
uma tára para deitar na concha que lhe é
interessada.
- Não são decapitados parricidas e criminosos
vulgares, porque são considerados impecilhos à
tranquillidade publica e á ordem social? Quando as
relações internacionaes se rompem por questiunculas
duvidosas, não se armam as potencias, e por méro
prazer fuzilam os proprios prisioneiros, contra todas
as leis de guerra, sociaes e humanas?
Não será, por ventura, uma obra de misericordia
parar o soffrimento de um leproso naquellas
condições, visando-se o bem, evitando-se a
disseminação fatal?
Essa reclusão que os governos estabeleceram, por
indicação exclusiva da medicina, já provou a algum
povo a extincção da molestia?
E depois, si a sciencia topasse com o especifico
dessa desgraça social, que beneficios viriam para os
cegos, os mutilados, para esse pobre homem da
novella, pedindo a nossa caridade de terminar o que
tanto custa a acabar?
A Noruega, Islandia, conseguiram, systema-tizando a
reclusão, fechar os seus leprosarios?
Sejamos honestos. Alliviemos pela euthanasia áqueles
que se decidem a morrer, com a vontade da família e
auctorização de lei.
- Caro Dr. Paulo, a justiça humana é uma figura de
rhetórica. A propria lei, amanhã, não condemnaria
a outro morphetico egual.
Criminosos vulgares escrevem nos jornaes officiaes os
detalhes das suas façanhas, e passeiam, á tarde,
pelas avenidas, recebendo elogios pela sua chronica
litteraria. Destroços humanos, de faces lepurinas e
mãos enluvadas cruzam comnosco as ruas da metropole
e tomam café ao nosso lado, nas rodas sociaes.
Tuberculosos cavitários, quasi in extremis, recebem
os amigos em lautos jantares e dansas aristocraticas.
Convalescentes de typho voltam ao seu trabalho de
distribuir manteiga á freguezia, comem comnosco nos
restaurantes, apertam-se as mãos nos encontros
sociaes, e indaga-se, admirado, como se contagiara de
molestia transmissivel um moço que escarrára
sangue, outro que se prostára febril, de molestia
cyclica, quando nas escolas cursam as aulas creanças
ainda não refeitas de enfermidades contagiosas.
Januario Cicco, em outro trecho,
chama a atenção para o confinamento obrigatório e
altamente discriminatório dos pacientes com lepra ou
tuberculose, sempre em condições degradantes, o que vem
antecipar em quase 70 anos uma discussão oportuníssima
sobre hospitalização e segregação de doentes. Vê-se,
portanto, a sua preocupação humanitária e abrangente,
como um todo, além de também reportar-se ao princípio
da autonomia, pouco considerado à época:
- Tem razão o collega,
disse Dr. Salema; e o preconceito que as sociedades
transformaram em doutrina, em torno da qual criam-se
leis sanitarias, castigando doentes num
enclausura-mento, contra as liberdades individuaes, a
pretexto da salvaguarda collectiva, tem o sabor de um
libello á ignorancia dos sanitaristas deste e dos
tempos do isolamento nas serras, vestindo-se os
leprosos com camisolas assignaladas, chocalhos ao
pescoço e inscripções terroristas à testa.
- Felizmente já se vae accordando em permitir que os
leprosos frequentem os dispensarios, os ambulatorios;
e isso traz a vantagem de attrahil-os aos serviços
especiaes, educando a população contra esse pavor
do contagio.
- Não é que eu seja contrario aos leprosarios,
continuou o Dr. Paulo, tomados nas accepções de
hospitaes especiaes, onde se devem internar os
desprotegidos da sorte, aquelles que se não podem
manter em domicilio, ou não o querem. O que parece
demasiado é obrigar-se systematicamente á reclusão
(o grifo é nosso), a titulo de evitar a
disseminação da molestia.
Ressalte-se além de tudo, que,
esta concepção de repulsa à discriminação (Justiça)
e desrespeito à vontade do paciente (heteronomia) era
uma concepção que, na época, batia de frente com o
paternalismo médico (autoritarismo) e afrontava os
cânones sagrados da assistência à saúde, considerados
como concessão do médico e uma benção derramada sobre
os infelizes enfermos.
Além da audácia filosófica
imanente à preservação dos direitos humanos no âmbito
da medicina, vislumbra-se na obra o acervo científico
disponível nos anos 20/30, considerado de ponta para a
época e revelador de novos horizontes na doutrina ética
e na ciência médica, como dispõe o texto a seguir:
Depois que Cardoso Fontes
demonstrou a acção do ultravirus na pathologia das
molestias infecciosas, ruiu em parte o edificio da
prophylaxia agggressiva, dado que a reproducção das
bacterias se faça tambem por emissão de granulos, além
da sua divisão transversal, constituindo os elementos
filtraveis, inaccessiveis até agora ás lentes. E assim
ousa-se dizer que o germen havido no campo do
microscopio, sem faculdade reprodutora, não affirma
sempre que o seu portador seja um tuberculoso ou um
hanseneano, de vez que as manifestações clinicas não o
affirmem à priori.
Muito além da visão filosófica
perturbadora e revolucionária, o autor mostrou uma
lucidez desconcertante ao apontar os grandes favorecidos
com a miséria humana, numa antevisão histórica
perfeita:
Apezar dos incontestaveis
resultados da serotherapia, a peste negra, a
diphteria, o tetano, etc., abrem claros profundos no
obituario, exgottando a economia privada com esses
tratamentos carissimos.
Fala-se hoje de especifico com tamanho desplante,
que se tem a impressão de que a medicina dispõe
mesmo desses recursos maravilhosos, para o combate
certo a determinadas molestias.
Desse patrimonio scientifico só aproveitam os
industriaes da molestia, fabricando os afamados
especificos (o grifo é nosso), a preços
exorbitantes, ao alcance de pouca gente. E o mais
interessante é que acompanham as bulas dos velhos e
novos especificos, monographias de sabios
professores, de medicos sem clinica, sem um serviço
especial, onde os seus estudos possam valer um
criterio acima de qualquer suspeição.
Logo em seguida, considerando o uso
indevido do poder de eutanásia, suas implicações
legais, o autor chama a atenção para as impropriedades
possíveis no exercício deste poder, mas sem perder de
vista a supremacia da tese:
Demais, as leis humanas
sempre cogitaram de cercear a maldade, prevendo o
choque de interesses inferiores, na actuação dos
destinos sociaes. Si se legalizasse a morte
prophylactica, seria ella uma porta escancarada á
deturpação dos seus verdadeiros fins, dando margem
a irregularidades criminosas, porque, entre nós
mesmos, que nos dizemos apostolos, que juramos
respeito incondicional aos interesses da sociedade,
ao principio irremovivel da nossa probidade
profissional, extranhamos, pasmos de vergonha, a
acção de muitos na perpetração de crimes
previstos pelo codigo penal de todos os povos cultos,
praticando-se o abortamento clandestino, largamente
remunerado. Seria preciso uma penalidade especial
para esses vivedores da morte, sacrificando muitas
vezes duas vidas, para se ficar mais ou menos
tranquilo quanto á inversão dos propositos
proclamados pelos sectarios das suas idéas.
- A lei encontraria, naturalmente, meios de
acautelar, com segurança, os interesses sociaes.
Tão criterioso se mostra Januario
Sicco na defesa da tese que não advoga para a medicina
apenas o privilégio da indicação ou da execução do
ato, mas aponta um consórcio interdisciplinar (tribunal)
para decidir sobre a questão, talvez similar aos poderes
dos Comitês de Ética das instituições hospitalares na
atualidade, e mais adiante dispõe:
Maeterlink, Spencer e bem
muitos outros partidarios da euthanasia, quando
attribuem ao medico a execução da morte benefica,
não avocaram para elle a prioridade da sentença.
Dado que o medico dispõe de auctoridade scientifica,
é indiscutível que do seu lado estão os melhores
recursos e conhecimentos para a terminação de uma
vida dolorosa, que se não quer acabar.
Vale a pena adeantar que, quando se fala de
euthanasia, o profano, ou mesmo aqueles eruditos que
se batem pela dysthanasia, por um principio
superficialmente moral, eriçam-se-lhes os cabellos e
clamam misericordia, deixando entre os demais
circunstantes a noção de que o medico, sem outra
formalidade, por si só fará a euthanasia, toda vez
que a sua sciencia desenganar um desgraçado, ou um
desilludido dos recursos medicos reclamar o fim dos
seus dias.
- O que é imperiosamente necessario é que o publico
saiba das immensas difficuldades creadas pela
justiça, para se pôr termo a uma existencia
tormentosa. Assim, a legislação euthanasica
organizaria um tribunal, perante o qual os casos
seriam estudados e resolvidos, acautelando a ordem
moral da sociedade, e os adversarios da bôa morte
poderiam, então, discutir as vantagens, ou os
perigos da morte piedosa.
O livro sobre eutanásia, objeto do
nosso comentário, mostra-se portanto rico em histórias
sobre moribundos ou seres inviáveis. Apresenta ao longo
da narrativa diversos episódios extraídos da história
universal, do acervo de lendas e mitologias, para
ilustrar e ornamentar o estilo exuberante e pujente da
sua tese. Mas, sobretudo, é preciso convir, representa
um estudo do direito à morte entre pacientes
insalváveis, como flagelados da condição humana ou
simples excluídos formais do prazer da vida, se não
"cadáveres adiados que procriam", no dizer
prosaico de Fernando Pessoa.
A obra é instigante, audaciosa,
precursora ao que menos seja de um riquíssimo debate
sobre a disponibilidade da vida (Kant), do conceito
inovador de cura (não apenas como salvação da morte),
visto como alívio do sofrimento, quando a vida é apenas
dolorosa na forma e no conteúdo. A despeito da novela
que ilustra o tema, não há dúvida de que se trata de
uma obra marcada pela reflexão viva em torno de um tema
bioético e que não pode ser desprezada no acervo
literário sobre o direito à morte assistida na medicina
ou fora dela, tema ainda mal resolvido e cada vez mais
palpitante às portas do Terceiro Milênio.
A propósito, e para rematar esta
reflexão colorida pela literatura, convém citar a
quadra de Fernando Pessoa, indicativa de que a vida, ela
própria, algumas vezes torna-se uma doença de tal forma
que a morte deixa de ser um castigo para se transformar
em benção:
"A vida é um
hospital
Onde quase tudo falta.
Por isso ninguém se cura
E morrer é que é ter alta"
Por derradeiro, convém recomendar
aos leitores, se porventura dispuserem da obra original
com referências, em bom estado de conservação, ou dela
souberem, informar aos coordenadores do simpósio ou à
Biblioteca do CFM, em face do interesse na preservação
da memória e, se possível, restauração de uma obra
histórica pioneira no tema e precursora na tese, um
registro ágil e gracioso da tecnologia médica nos anos
30, além da primorosa crônica sobre atitudes médicas e
costumes sociais.
Abstract -
Euthanasia The
author, in an attempt to illustrate the
scientific debate over euthanasia and to mitigate
reflections on what is considered to be a
difficult topic, renders observations on an
invaluable publication of the 1930's, a medical
and sociological essay written by Januario Cicco,
most likely a medical doctor, who reflected for
the first time in Brazil on a topic then
considered loathsome and even disrespectful. The
literary work exposes arguments in favor and
against euthanasia in a very capable manner,
presented in the ingenious form of a novel which
evolves through dialogue, much like the
reflective work of Plato. The book unveils
stories of the saga of the deceased, scenes which
occurred more than half a century before in the
frightful setting of the Santas Casas de
Misericórdia, precarious and public
infirmaries run by nuns, which at that time were
virtual depositories of the unfortunate and
unwanted. Januario Cicco, towards the end of the
novel, sways in favor of accepting euthanasia as
a charitable way of alleviating unbearable
suffering by terminal patients, when a doctor,
based on solid medical principles, must act as
the earthly extension of Divine mercy. This is
the conclusion he reaches at the end.
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Bibliografía
- Cicco J. Euthanasia: ensaio de
crítica médico-social. Rio de Janeiro: Irmãos
Pongetti, 1937.
Dirección para correspondencia
Conselho Federal de Medicina
SGAS 915 Lote 72
70390-150 Brasília-DF
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