Mesmo que a intuição
científica leve a crer que estamos marchando
para a cura da AIDS, muitas verdades médicas
ainda não foram descodificadas e o preconceito
continua a crescer como uma avalanche arrasadora.
O perigo de tal avanço é que essa doença saia
do corpo dos pacientes e permaneça na
imaginação de todos, estigmatizada pela
discriminação odiosa e fantasiada pelo modismo
que contamina os doentes, a sociedade e os
próprios médicos. O risco, portanto, é se
transformar a AIDS numa ficção, ou criar-se uma
ideologia política autoritária capaz de
promover o medo como controle social mais
rigoroso.
O fato é que hoje, em toda parte, os portadores
de AIDS enfrentam uma situação constrangedora.
Sofrem o horror de uma doença que os estigmatiza
no convívio social e os avilta na luta pelos
meios de sobrevivência. São doentes marginais
do desprezo e do abandono, mesmo dos que lhes
são próximos. Negam-lhes tudo: o afeto, a
estima, a solidariedade e, até, o direito de
morrer com dignidade.
Vejamos algumas situações: A esterilização dos HIV -
positivos
Qualquer que seja o
andamento da discussão que favorece a
esterilização humana, como forma de inserção
numa política de planejamento demográfico, não
existe nenhuma justificativa de ordem ética ou
legal, capaz de legitimar essa prática em
pessoas portadoras de sorologia positiva para o
vírus da imunodeficiência humana (HIV), porque
qualquer forma de insinuação eugênica traz
sempre o ranço do constrangimento e as marcas da
repugnância.
Mais grave do que esterilizar um homem ou uma
mulher, hígido e capaz, é invadir a intimidade
de um ser humano, aviltando-o na sua dignidade e
mutilando-o nas suas funções, unicamente com o
sentido de privar a sociedade da
responsabilidade, da vigilância e dos cuidados,
pelo fato de ser portador - mais de um estigma do
que de uma doença, deixando bem claro o
indisfarçado preconceito contra esses
indivíduos, expostos quase sempre às crueldades
de uma sociedade hipócrita e egoísta.
O aborto da mulher
infectada pelo HIV
Ainda que exista o risco da
contaminação ou de doença do feto, não se
permite legalmente nem se considera eticamente
defensável a prática do abortamento da mulher
infectada pelo HIV. O Código de Ética Médica
em vigor, em consonância com a legislação
penal brasileira, só admite o aborto em duas
situações: para salvar a vida da gestante ou
nos casos de gravidez resultante de estupro.
Pelo fato de se tratar de um matéria sem
resposta definitiva, no que diz respeito à
influência da sorologia positiva no processo
gestacional e da própria saúde do feto, minha
opinião é que não existe nenhum argumento
ético, jurídico ou técnico, capaz de
fundamentar a interrupção de uma gravidez numa
portadora de HIV-positiva ou mesmo de uma doença
de AIDS, a não ser que suas condições de
saúde sejam agravadas pela gestação, que
cessada a gravidez cesse o perigo e que não haja
outro meio de salvar-lhe a vida.
A gestante
HIV-positiva
Ainda que exista uma
possibilidade de morte precoce, de sofrimento
oriundo da doença, de riscos de contaminação
do feto e de informações desistimuladoras,
esses fatos nem sempre têm desanimado as
mulheres HIV-positivas na sua decisão de
engravidar. Não se sabe ainda, por exemplo, a
época exata da contaminação - se durante a
vida intra-uterina ou se no momento do parto,
mas, uma coisa é certa: a gravidez, nesta
hipótese, não melhora nem piora as condições
imunológicas das gestantes.
Assim, seja qual for a entendimento que se tenha
a respeito da transmissão, das formas de
infecção e do mecanismo de contágio, o médico
não pode impedir essa mulher de engravidar e ter
seu filho, se esse é o seu desejo. Mas,
tão-somente, oferecer-lhe todos os meios e
recursos necessários e disponíveis para uma
gestação nestas condições. Nenhum médico e
nenhuma instituição de saúde pode negar-Ihe
assistência, pois isso é um ditame ético
exigido a todos aqueles que professam a medicina,
mesmo que possam ter um entendimento diverso
sobre a questão, no seu plano conceitual e
doutrinário.
O sigilo como
instrumento social
É imperioso lembrar que o
segredo médico é um direito do paciente, como
forma definitiva de conquista da cidadania e
somente a ele cabe abrir mão desse privilégio.
A não ser nas duas outras situações que o
Código de Ética Médica desobriga: por justa
causa ou por dever legal. O paciente infectado
pelo HIV não foge a essa regra.
Se o paciente, neste particular, manifesta o
desejo de que seus familiares não tenham
conhecimento de suas condições, ainda assim
deve o médico respeitar tal decisão,
persistindo essa proibição de quebra de sigilo
mesmo após a sua morte. No entanto, é
providencial que se exija do portador do
HIV-positivo a designação de uma pessoa de sua
inteira confiança para servir de intermediário
entre ele e quem o assiste, e que o paciente
colabore no sentido de cientificar aos seus
parceiros sexuais ou membros de grupo de uso de
drogas pesadas, no intuito de evitar a
propagação do mal. Por outro lado, é
obrigatória a notificação de todos os casos
suspeitos ou com diagnóstico confirmado de AIDS.
Não deve haver notificação dos casos de
pessoas simplesmente infectadas pelo HIV.
Se os portadores de HIV confiarem na
preservação do sigilo das informações
prestadas às equipes multiprofissionais que
cuidam desses casos, e que somente na condição
de doentes de AIDS haveria comunicação aos
setores sanitários responsáveis, além da
certeza do respeito a sua privacidade, estaria
resolvida, em parte, a questão dos exames
periódicos voluntários, contribuindo de forma
significativa para o controle e a avaliação do
quadro epidemiológico.
A inconveniência
dos testes pré-admissionais
Uma das formas de
preconceito mais evidente, na relação com
possíveis portadores do HIV, é a solicitação
de exames pré-admissionais que se vem impondo
como condição de ingresso no trabalho, na
escola e, até mesmo, no internamento hospitalar,
na expectativa de surpreender indivíduos
sorologicamente positivos.
Entendo que não existe qualquer justificativa
técnica ou científica para tais exames. Quem
necessita saber sobre esses resultados são os
próprios indivíduos e as autoridades
sanitárias que organizam suas campanhas e medem
a extensão do problema. Agindo-se de tal maneira
contra os soro-positivos além dos despropósitos
ético e científico, o critério é humilhante e
contrário aos interesses sociais, pois desagrega
o indivíduo, empurrando-o para a marginalidade
sem as possibilidades de trabalho, sem a
assistência médica e sem as condições
financeiras que favoreçam sua sobrevivência..
Por fim, é bom que se enfatize ser a
identificação de pacientes HIV-positivos em
internamento hospitalar, uma estratégia sem
muita sustentação moral e nenhuma
argumentação técnica, pois, na urgência, onde
os aludidos riscos seriam mais evidentes, não
haveria tempo para esperar o resultado
sorológico. Haveria ainda o risco dos pacientes
com viremia e sorologicamente negativos, e os
casos dos que se negassem a tais exames. Os
pacientes, por sua vez, notadamente os submetidos
a procedimentos invasivos, teriam também o
direito de exigir, com muito mais razão, o teste
do médicos. O que se deve exigir urgentemente é
um nível sério de cuidados, na proteção de
todos os profissionais de saúde, com enfoque
para aqueles casos onde a contaminação
sangüínea seja possível. No entanto, se alguma
instituição quiser exigir a triagem sorológica
dos pacientes não emergências, para que esse
modelo venha ser eticamente discutível, é
necessário que o exame seja voluntário e
informado, que o paciente ao não aceitar o teste
possa ser tratado sem nenhuma restrição, e que
o paciente positivo tenha garantia do sigilo em
relação ao resultado do exame e não sofra
qualquer prejuízo na qualidade da assistência
requerida.
O problema do menor
infectado em estabelecimentos correcionais
Das tantas complexidades do
problema, certamente, a mais complexa é a do
posicionamento a ser adotado pela equipe médica,
em face da solicitação de autoridade judicial
ou administrativa, sobre o fornecimento de dados
relativos a menores infratores e detentos do
sistema correcional, portadores de sorologia
positiva para o HIV.
Em primeiro lugar, o médico não deve revelar
às autoridades administrativas dos sistemas
correcionais a identidade dos menores infratores
com sorologia positiva. Não estaria justificada
a quebra do sigilo pela suposta necessidade de
adoção de medidas profiláticas, pois de nada
adiantaria tal identificação, quando se sabe
não existir nenhum procedimento que possa trazer
benefícios ou que respeite à dignidade do
menor, aumentando, isso sim, os riscos de
segregação e de hostilidade. O que se deve
fazer urgentemente, é melhorar as condições do
atendimento nessas instituições, hoje tão
precárias e desumanas. Depois, acho conveniente
revelar o fato aos pais ou aos seus responsáveis
legais - no caso em tela, o juiz - por entender
que aquele menor não tem a capacidade de avaliar
seu problema e de conduzirse por seu próprios
meios para solucioná-los, como recomenda o
artigo 103 do Código de Ética Médica.
E, por fim, acredito ser necessária a
revelação do segredo à equipe
multidisciplinar, que trata também do menor, por
considerar que a solução do problema não é da
exclusiva competência médica, mas de tantos
outros profissionais, os quais, também, sujeitos
à obrigatoriedade do sigilo.
A postura do
médico infectado
O médico infectado, como
todos os pacientes, tem o direito à privacidade,
ao sigilo e ao respeito que toda pessoa merece,
não se podendo privar dele suas atividades no
convívio social e do trabalho, respeitadas, é
claro, as condições que seu estado de saúde
permite e o tipo de atividade exercida.
Por outro lado, não se pode aceitar as
recomendações do Centro de Controle de Doenças
dos Estados Unidos (CDC), a partir de
possibilidades remotas de transmissão do HIV,
quando trata dos profissionais de saúde
infectados. Em primeiro lugar, não há razões
de ordem técnica ou moral para a realização
sistemática e compulsória de sorologia anti-HIV
em profissionais mais expostos, pois o risco de
contaminação em alguns casos é quase nulo.
Discute-se se existe ou não a necessidade da
comunicação aos pacientes sobre a condição
sorológica dos médicos infectados, que possam
se envolver nos chamados procedimentos invasivos
(atos sujeitos a risco de contaminação por
perfuração acidental percutânea do
profissional, através de contato do seu sangue
com tecidos do paciente). Também não se vê a
necessidade do impedimento de profissionais
infectados de trabalharem normalmente em tarefas
compatíveis com as suas condições de saúde e
em determinadas modalidades de trabalho sem risco
de contaminação.
A postura do
médico ante os doentes e infectados pelo HIV
Nenhum médico pode recusar
o atendimento profissional a pacientes portadores
do vírus da imunodeficência humana, pois essa
assistência representa um imperativo moral da
profissão médica. Assim se reporta em tom
dogmático a Resolução CFM nº 1 .359, de 11 de
novembro de 1992.
Levando em conta que a medicina é uma profissão
voltada para a saúde do ser humano e da
coletividade e deve ser exercida sem nenhuma
forma de discriminação; que a AIDS continua
avançando e mudando seu perfil epidemiológico
quando agride os diferentes grupos populacionais;
e que o impacto da doença é medonho e limita o
paciente, vulnerando-o física, moral, social e
psicologicamente, tem-se de admitir que a
obrigatoriedade do atendimento há de ser
extensiva a todas as instituições de saúde,
sejam elas públicas, privadas ou ditas
filantrópicas.
É preciso também que esse atendimento seja
integral e compatível com as normas de
bio-segurança recomendadas pela Organização
Mundial de Saúde e pelo Ministério da Saúde,
e, por isso, não se pode aventar qualquer forma
de desconhecimento ou falta de condições
técnicas para recusar a assistência. Essas
instituições devem também propiciar a todos os
profissionais de saúde condições técnicas
para recusar a assistência. Essas instituições
devem também propiciar a todos os profissionais
de saúde condições dignas para o exercício da
profissão, inclusive os recursos para a
proteção contra a infecção, com base nos
conhecimentos científicos disponíveis. A
garantia dessas condições de atendimento é de
responsabilidade do Diretor Técnico de cada
estabelecimento de saúde.
As deficiências da
legislação brasileira
Partindo do princípio de
que as questões de saúde pública representam
um direito inerente à cidadania e uma
irrecusável e fundamental obrigação do Estado,
cabe, através de uma estratégia bem articulada
junto ao Sistema Único de Saúde, uma atenção
desdobrada à prevenção, ao diagnóstico e ao
tratamento da AIDS, assim como uma abordagem mais
séria em favor dos infectados pelo HIV.
Atualmente, muitos são os países que contam com
normas específicas que regulam os direitos dos
pacientes aidéticos e dos infectados, desde a
proibição da rejeição de crianças
sorologicamente positivas em escolas e creches,
até a censura aos pedidos de testes para o HIV
de pacientes em internamentos hospitalares.
Primeiro, é necessário que se assegure a esses
pacientes o acesso ao tratamento adequado, seja
no ambulatório, no hospital ou no domicilio,
incluindo nisso o fornecimento gratuito de
medicamentos necessários e eficazes no
tratamento da AIDS, aprovados pelo Ministério da
Saúde, afim de que essas ocorrências não se
transformem em "casos de polícia".
Defendo também a idéia - embora criticada por
alguns, que se estipule em cada hospital público
ou privado, qualquer que seja sua especialidade,
um número mínimo de leitos para tratamento
desses pacientes, como forma de impedir que eles
sejam rejeitados no internamento, por motivo de
discriminação ou má vontade, mesmo sabendo da
disponibilidade de leitos em nosso país.
Advogo também a idéia de não se criar leitos
destinados aos pacientes apenas infectados pelo
HIV, que por ventura se internem nos hospitais
para tratamento clínico ou cirúrgico, pois
inevitavelmente seriam discriminados, dando-se,
inclusive, oportunidade para a exigência dos
testes pré-admissionais, convertendo-se em
expediente vexatório, hostilizante e segregador.
Nessa legislação deve ficar bem claro o direito
que tem o paciente HIV-positivo da manutenção
do sigilo médico, do respeito a sua privacidade,
o impedimento de demissão sem justa causa do seu
trabalho, a proibição da divulgação do seu
nome ou de seus parentes em listas de resultados
de exames e o direito de ter solicitados seus
exames complementares quando pedidos pelos seus
médicos assistentes.
É necessário ainda que se estipule espaços
gratuitos nos meios de comunicação para
divulgação desses interesses, a garantia dos
pacientes aidéticos a todos os direitos
trabalhistas, previdenciários e administrativos,
além de assistência jurídica gratuita , acesso
fácil e sem ônus ao tratamento dos hemofílicos
comp. forma de prevenção à AIDS, direito de
receber visitas no hospital, de atendimento
médico de urgência e de intercorrências
clínicas e o de ter seu corpo velado em locais e
condições respeitosas, de acordo com a
reverência que se deve à dignidade humana. .
Outro fato é o da criação de serviços de
diagnóstico gratuitos, estimulando-se assim os
indivíduos ao auto-exame, sem nenhum ônus e
cujos resultados sejam dados através de meios
que não identifiquem o paciente, mantendo-se o
respeito a sua privacidade. Essa seria uma forma
de fazer com que um maior número de pessoas
procurem esses exames.
Desestimar de uma vez por todas, não através de
uma portaria, mas por meio de uma lei, a
exigência de testes sorológicos para o HIV aos
candidatos de concurso público ou ao acesso a
empresas privadas, mesmo sabendo que um mandato
de segurança, neste particular, seria um
remédio tranqüilo e eficaz.
Ficar evidente na Legislação a proibição da
exigência de testes compulsórios de sorologia
para o HIV, como condição obrigatória de
internamento hospitalar, pré-operatório, assim
como nos indivíduos recolhidos em
estabelecimentos penitenciários, ou de
internação, antes de serem recolhidos. Isso
não tem nenhum subsídio técnico ou
científico, nem ajudaria em nada esse problema,
a não ser fomentar a discriminação e a
intolerância.
Conclusão
Se quisermos efetivamente
lutar e vencer esse mal, devemos em primeiro
lugar, não procurarmos explicações absurdas
para justificar nossa indiferença e as nossas
limitações. Depois, ficar ao lado dos que
estão sendo vitimados pelo flagelo da AIDS,
neste instante tão amargo da história da
humanidade.
Mesmo admitindo-se que essa doença seja, em
parte, uma invenção nossa, ninguém pode
escamotear a sua gravidade como entidade
epidêmica, que agride o sistema imunológico de
forma complexa, de assustadora rapidez e, até
agora, incurável.
Urge, ainda - hoje, mais do que nunca - exigir do
poder público as condições necessárias para
tratar esses doentes com a dignidade que merece a
condição humana, e fazer ver à própria
sociedade que a única forma de vencer essa
doença é protegendo e amparando os que estão
sendo atingidos. E também denunciar todas as
injustiças cometidas, mitigando as suas dores e
compreendendo sua dolorosa solidão na hora do
sofrimento e da morte.
Essas e outras epidemias passarão. Assim está
escrito. O que fica é o perigo que o homem
carrega consigo mesmo e a falta de convicção de
que seu destino está inexoravelmente preso ao
destino do outro. Se não, cabe uma mea culpa
universal.
Referências
Bibliográficas
- Chaui M. Repressão
sexual - Essa nossa desconhecida.São
Paulo: Brasiliense,1985.
- Foucault M. História
da sexualidade. A vontade de saber. vol.
I, Rio de Janeiro: Graal, 1984.
- França GV. Direito
Médico. São Paulo: Fundo Editorial Byk,
1992.
- Levi G. Síndrome da
imunodeficiéncia adquirida (AIDS).
Revista da Associação Médica
Brasileira vol. 31, nº. 9/10, 1985.
- Sontag S. A doença
como metáfora.Rio de Janeiro: Graal,
1984.
(*) -
Professor de Medicina Legal e Deontologia Médica
da Universidade Federal da Paraíba - Brasil
Endereço para contato:
Rua Santos Coelho Neto, 200 - Apt. 1102 -
Manaíra
58030-450 - João Pessoa - Paraíba - Brasil
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